A Tainha

“Entre as mil e uma maravilha que Deus criou nesta Ilha de Santa Catarina, a tradicional pesca da tainha ocupa, sem nenhum favor, o seu lugar de destaque.”

Escreveu o grande Mestre Franklin Cascaes, um dos maiores defensores da tradição popular ilhoa em seu primeiro trabalho para o jornal A Gazeta. Numa manhã muito fria, foi ele com a sua senhora Elisabeth Pavan Cascaes até o Pantâno do Sul. Chegando lá, arranjou uma vaga para pescar tainha junto com os pescadores artesanais. Trabalhou como patrão, remeiro, proeiro, arrastador de rede e vigia. Praticou tudo em diversas ocasiões para poder escrever para o jornal.

Mas afinal, quem é a tainha, esse peixe que é aguardado entre os meses de maio a julho por milhares de pescadores artesanais, organizados coletivamente em ranchos de pesca?

Peixes sendo escalados (secos ao sol após salga) em cerca de casa no interior da Ilha de Santa Catarina, provavelmente na década de 1970. Evidencia-se que o senhor que apresenta um dos peixes é o professor Franklin Cascaes – importante estudioso e disseminador da cultura local. Fonte: Acervo do Museu de Arqueologia e Etnologia Professor Owsvaldo Rodrigues Cabral (UFSC).

Tainha é a denominação conferida a uma gama de espécies da família Mugilidae, especialmente aquelas pertencentes ao gênero Mugil.  Diferentes espécies de tainha podem ser encontradas ao longo de toda costa brasileira, bem como em oceanos de todo o mundo (tanto em águas costeiras tropicais como temperadas, excetuando ambientes polares). Em função disso, elas são peixes amplamente empregados na alimentação ao longo da história, relatadas inclusive na dieta do antigo império romano, no Mediterrâneo.

A pesca da tainha já era praticada na Ilha de Santa Catarina antes mesmo da chegada dos colonizadores açorianos e a implantação das Freguesias no litoral catarinense. Valendo lembrar, que em 1557, o aventureiro alemão Hans Staden observou e descreveu a pesca da tainha pelos guarani. 

A riqueza da fauna atraiu seres humanos para a região desde tempos bastante remotos, quando grupos de caçadores-coletores puderam abandonar o nomadismo e se fixar na terra, à beira-mar, onde aprenderam a extrair o berbigão, a ostra e o marisco e a pescar com redes e anzóis. Os primeiros grupos humanos a habitar esse local são conhecidos hoje especialmente pelos grandes montes de conchas que construíram, os sambaquis, por meio da acumulação de conchas de moluscos e ossos dos peixes que consumiam. A eficiência do seu modo de vida pode ser medida pelo tempo em que permaneceram como senhores da Ilha de Santa Catarina: desde cerca de 6.000 até aproximadamente 2.000 anos atrás.

Quando os grupos carijós (guaranis do litoral) ocuparam a ilha, por volta do ano 1.400 da nossa era, os construtores de sambaquis já haviam desaparecido há mais de 1.500 anos. Por essa razão, é difícil estabelecer alguma continuidade entre uma cultura e outra. Observando a pesca hoje e caminhando por nossas praias, o filósofo Mauro Costa lança uma hipótese: “quiça o conjunto de oficinas líticas localizadas nos cantos de muitas das praias da Ilha, possivelmente são resultado do trabalho realizado para afiar e amolar ferramentas de pesca, principalmente lanças, para arpoar as grandes mantas de tainhas que descansavam nestes locais durante sua epopeia de migração pelo litoral.”

Portanto, com tantos milhares de anos de migração, a tainha foi e continua sendo tão importante para as comunidades tradicionais, que a pesca artesanal da tainha tornou-se em 2019, um Patrimônio Cultural do Estado de Santa Catarina. Mas afinal, da onde a tainha vem todos os anos na mesma época?

Foto: Ricardo Wolffenbüttel / Secom

A tainha é uma espécie tolerante a variáveis ambientais e passa a maior parte do seu ciclo de vida em ecossistemas lagunares-estuarinos, migrando posteriormente para o mar, quando forma grandes cardumes, deslocando-se ao longo da costa para a migração reprodutiva. Fatores ambientais que influenciam a migração da tainha são as condições de vento (com ventos soprando de sul), o resfriamento da água e a entrada de água salgada nos estuários.

O conhecimento ecológico tradicional dos pescadores artesanais reconhece tais aspectos como condicionantes de sua atividade: “O ciclo da tainha é ela vir para o norte, ela sai do Rio Grande, ela sai da barra da Lagoa dos Patos do Rio Grande, isso quando ela vem do Uruguai também, ele vem do norte para desovar e aí ela vai passando em tudo quanto é praia.”

Pode-se dizer que a tainha é um dos peixes mais estimados pela população da Ilha, sob diferentes formas: frescos, secos, salgados, etc. Suas “ovas” também constituem em um importante recurso alimentar. Sua carne é branca, saborosa, classificada como “gordurosa” (com teores de lipídeos que podem variar em função da espécie e da época, porém rica em ácidos graxos ômega 3 – EPA e DHA) e de boa qualidade. Apesar de classificada como um “peixe forte”, em termos de aroma/sabor, dentre os métodos de cocção empregados para a espécie, pode-se destacar: grelhar/chapear, fritar em postas, assar aberta ou fechada com recheio da própria ova e grelhar em churrasqueira, e claro, acompanhada de pirão de farinha de mandioca, arroz e feijão. 

Tainha na brasa oferecida no Rancho do Seu Nilo, Praia dos Ingleses.

E como é feita a pesca artesanal da tainha nas praias da Ilha de Santa Catarina?
Fiquem vocês, finalmente, com a crônica feita pelo nosso Mestre-mor Franklin Cascaes, que mencionamos logo no início:

Pesca da Tainha no Pântano do Sul

No dia 13 de maio do corrente ano, tomei o ônibus de Ribeirão da Ilha que faz linha para o Pântano do Sul e fui assistir os pescadores do referido lugar lancearem tainhas. Entre as mil e uma maravilhas que Deus criou nesta Ilha de Santa Catarina, a tradicional pesca da tainha ocupa, sem nenhum favor, o seu lugar de destaque.

Pântano do Sul é um recanto aprazível, possui uma pequena capela, dedicada ao grande pescador São Pedro e um regular número de casas. A única indústria que possui é a da pesca, executada ainda dentro de métodos primitivos.

Existem em Pântano do Sul, atualmente uma sociedade entre seis pessoas, que possui seis redes, bem equipadas para a pesca da tainha, tendo cada uma dessas redes 300 braças de comprimento por 12 de largura e todas confeccionadas com fio barbante. A parte superior é entralhada com corda de fibra e cortiça, pequenos pedaços de madeira leve, o que a faz flutuar, enquanto que a parte inferior é também entralhada com corda de fibra e chumbo, pequenos saquinhos cheios com areia que, pesando, a levam para o fundo do mar, conservando assim o pano da rede aberto verticalmente. Em cada extremidade das redes são amarrados cabos de fibra com mais ou menos 200 metros de comprimento cada um, os quais servem para puxar as redes para a praia, depois de feito o cerco ao peixe.

São necessários 20 homens para trabalhar em cada rede. A tripulação da canoa é composta de sete camaradas, que são: o patrão, o chumbeleiro, o corticeiro e quatro remeiros. Quando se aproxima o tempo da pesca da tainha, as redes são colocadas dentro das canoas com seus respectivos equipamentos e toda a “camaradagem” fica alerta, inclusive os moradores do lugar.

 Vigia

Além dos 20 homens que trabalham com as redes há os “camaradas vigias”. Estes são escolhidos e considerados entre a tripulação como verdadeiros técnicos na arte de enxergar o peixe nadando em direção dos lanços, isto é, lugares onde podem ser cercados com as redes. O número de vigias em Pântano do Sul é de uns 20 homens, que se distribuem em volta da praia sobre cômoros e penhascos, permanecendo aí dias inteiros, vigiando com muita atenção o aparecimento dos peixes no lanço. Esses homens têm grande responsabilidade no êxito ou fracasso da pesca. Quando um deles avista o peixe vindo em direção aos lanços, entra imediatamente “em conselho” com outros vigias para ver se convém ou não dar sinal à tripulação que está na praia aguardando ansiosamente a ordem de cerca. 

O peixe aparece, às vezes, em “magotes” (pequena quantidade) “fuzilando” (virado de barriga para cima), em “cano” (uma fila em direção ao lanço), em “manta” (quantidade regular), em “cardume” (quantidade maior) e finalmente, um “encarnado”, que são justamente muitos milhares de peixes. Quando o peixe entra no lanço e a quantidade é compensadora para uma boa pesca, os vigias iniciam o sinal e a tripulação que está na praia começa a correr em direção ao povoado, soltando uma espécie de clamor ou “apupo”, que ecoa pelos ares, alertando toda a população, que corre emdisparada a caminho da praia para trabalhar ou assistir o espetáculo tradicional e maravilhoso que é a pesca da tainha, presente que o “Creador” vem lhes dando ano após ano desde o tempo dos seus antepassados. 

Sinais e posições dos vigias em relação à situação geográfica da praia

Combinada a ordem do sinal, os vigias entram em ação. Para dar os sinais, isto é, “abanar”, usam paletós, panos ou chapéus. Para a embarcação com a rede sair do rancho, até a “pancada da maré”, os vigias abanam à frente; para iniciar o cerco da praia até alcançar o lanço, abanam para o lado do Sul; para fazer o cerco, abanam para o lado Leste ou Oeste, conforme a posição do vigia; para fechar o cerco, abanam para o lado Norte. Para sair só uma embarcação com a rede, o vigia conserva-se no lugar onde está colocado.

Se eles calcularem o cardume que entrou no lanço em muitos milhares, então o sinal é dado da seguinte maneira: para sair outra canoa com rede o vigia desce do cômoro ou penhasco e vem colocar-se na praia junto ao mar; para duas redes, desce outro vigia e coloca-se ao lado do primeiro; para três redes, desce o terceiro e coloca-se ao lado do segundo e assim até completar o número de seis, se for preciso, e que é justamente o número de redes que eles possuem em Pântano do Sul.

Quando o peixe aparece à noite, os sinais são dados dos mesmos lugares, cômoros ou penhascos, com fachos de bambus secos ou com tições, obedecendo o mesmo ritmo anterior, que é a tradiçãodo lugar. 

O cerco

Quando o cerco é feito por mais de uma rede, acontece o seguinte: a primeira fica mais próxima da praia; a segunda contorna a primeira; a terceira contorna a segunda; e assim sucessivamente, formando uma espécie de semicircunferência concêntrica. A tainha ao sentindo-se cercada vai pulando por cima da rede, passando de um cerco para outro. Por essa razão é que a última rede consegue prender maior quantidade de peixe.

Puxamento das redes para a praia após o cerco

Terminando o cerco, encalham a canoa na praia e sua tripulação corre para auxiliar os camaradas encarregados de puxar a rede. À medida que a rede vai se aproximando da praia, eles a vão contornando com os pés sobre a tralha inferior e com as mãos suspendendo a tralha superior acima da superfície do mar para evitar que grande quantidade do peixe cercado consiga passar por baixo ou saltar para cima da rede. Ao chegarem com a rede na praia, jogam todo o peixe que conseguiram pescar, num monte, recolhem a rede na canoa e voltam para ajudar os camaradas da outra rede que está em segundo lugar e assim vão fazendo até terminar de recolher a última rede que está no cerco. Quando não há mais peixe para lancear, recolhem as canoas para os ranchos e estendem as redes nos varais para secar.

Distribuição do pescado

O peixe é dividido em duas partes, em quantidade e tamanho iguais. Uma parte pertence aos seis donos das redes que formam a sociedade. A outra pertence aos 120 camaradas e é dividida entre os mesmos em quantidade e tamanho iguais. Além do quinhão de camaradas, cada remeiro tem direito a uma tainha por mil e o vigia tem direito a 28 por mil, que corresponde ao quinhão de sete camaradas.

F I M

E a pesca da tainha ainda hoje tem esse valor de fortalecer nossos laços culturais em meio a beleza do ambiente em que vivemos. É um momento de compartilhar com amigos e familiares, saboreando uma deliciosa porção de tainha frita acompanhada de pirão ou arroz com feijão. É uma verdadeira festa para os sentidos.

Referências

Cascaes, F. A pesca da tainha no Pântano do Sul. Jornal A Gazeta, Florianópolis, junho de 1956. 

ECODIMENSÃO. Caracterização da pesca de tainha na modalidade arrasto de praia em Santa Catarina. Curitiba, dezembro de 2020.

Hickenbick, C.; Schmes, E. Registro da pesca artesanal da tainha no Campeche como patrimônio cultural de Santa Catarina. 156 p. 2020.

Pinho, R. A pesca artesanal na Baía Sul da Ilha de Santa Catarina: um patrimônio da cultura local. Revista Confluências Culturais. v. 5, n. 2, 2016.

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