Naufragados é a praia mais ao sul da Ilha de Santa Catarina. Sem estradas de acesso, chega-se apenas de barco ou trilha, partindo da Caieira da Barra do Sul. Ali, o mar tem características próprias que tornam a navegação particularmente desafiadora, por tratar-se de uma “boca de barra”, como dizem os nativos: o local onde as águas calmas da baía encontram o mar aberto.
Seu Cacau tem 73 anos. Desde criança, vinha com seu pai para pescar em Naufragados. Ali mora desde os 23 anos de idade, quando comprou o rancho de pesca de Seu Alberto Cavalheiro. Destes cinquenta anos dedicados à pesca artesanal, relata que o que fica são as boas memórias, como a dos melhores lanços já realizados pela parelha: 34 mil tainhas em 2003 e o memorável lanço do último ano, 2023, de mais de 40 mil tainhas. Em Naufragados, o trabalho duro não termina com o peixe pescado: os peixes precisam ser retirados de barco, sendo levados aos poucos até a Caieira da Barra do Sul para então serem distribuídos.
Em um cenário de abundância natural e riqueza histórica, a comunidade tradicional de pesca artesanal de Naufragados entretanto convive com o constante receio devido à disputa legal, que ocorre há mais de 20 anos, em torno da ocupação da praia de Naufragados. Tendo se tornado parte do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro na década de 70, a localidade passou a caracterizar uma Área de Preservação Permanente, o que proíbe qualquer tipo de construção fixa no local.
A medida, no entanto, desconsidera a existência de uma comunidade tradicional de pesca nativa desta localidade há gerações. O próprio Ministério Público, para justificar a decisão e efetivação de demolição de construções no local, já afirmou que “em Naufragados nunca houve comunidade tradicional”, conforme fala do Promotor de Justiça José Eduardo Cardoso em 20 de junho de 2023.
Seu Cacau conta que, em meio a esse conflito fundiário, teve seu restaurante derrubado: “Vieram com caminhão de polícia, veio seis viatura, veio três lancha. Vieram pela trilha. Um pouco veio de barco, um pouco veio de trilha. Deu mais de cinquenta polícia aí. Parece até que eles andavam atrás do maior bandido do mundo. Era eu”.
Carlinho, nascido e crescido em Naufragados, pesca de vigia desde os 14 anos. Hoje com 65 anos, conta que nasceu de forma natural, nas mãos de seu pai e de uma parteira local, assim como seus numerosos irmãos: 10 por parte de mãe, e mais 9 por parte de pai, com sua primeira esposa. Hoje, mora no Ribeirão da Ilha, pois não sente segurança em manter morada em sua comunidade natal.
Aprendeu a ser vigia com seu pai, que também exercia essa função. Do alto da “pedra do abano”, de onde observa a movimentação no mar, conta sobre a importância de seu trabalho para encontrar o momento certo para cercar a tainha: “Tem vezes que a gente vê cardume de tainha assim e não pode cercar, do mar ruim. Semana passada agora teve um monte de peixe aqui ó […], mas não dava de pescar. Da força de maré. Até se desse de sair, mas aí não dá de puxar rede. Por causa da força da maré”. No grande lanço do ano passado, estima que o cardume era constituído por cerca de 200 mil tainhas, das quais 40 mil se conseguiu trazer para a areia.
Seu Carlinho é da época que a rede era feita a mão: “Sei fazer rede, tarrafa, minhas irmãs sabem, eu tenho duas irmãs que elas fazem rede, tarrafa. […] Na época meu pai fazia, minha mãe fazia”.
A antiga parelha da Família Espírito Santo
A história da comunidade tradicional de pesca de Naufragados é muito antiga, e a genealogia da família Espírito Santo demonstra isso.
A família nativa da praia de Naufragados, hoje reside na comunidade do outro lado da trilha, a Caieira da Barra do Sul. Vivo na memória dos mesmos está o Senhor Alarício José do Espírito Santo, pertencente a terceira geração de nativos açorianos da comunidade de Naufragados, cujo bisavô materno havia sido faroleiro em 1898, e ele, o próprio Alarício, serviu, em 1945, o que à época era o Ministério de Guerra, atuando no Forte Marechal Moura de Naufragados.
Em 1962, o Sr. Alarício tornou-se proprietário de sua primeira parelha de pesca de tainha, tendo como embarcação uma canoa muito precária, registrada na Colônia de Pesca Z11 como Jaú. Face à falta de segurança desta embarcação, considerada sem condições, em agosto de 1965, comprou no município de Bombinhas-SC outra canoa de três remos de voga, registrada então com o nome de Santa Luzia, fazendo, no conjunto de valores históricos, reverência à santa padroeira da comunidade de Naufragados. Diga-se ainda que, segundo a percepção do povo local, a santa era a “menina dos olhos” do senhor Alarício.
Tornar-se proprietário não foi um acaso, mas resultado de naturais conflitos humanos, e, neste caso, foi consequência de seu desligamento da função de patrão da parelha para a qual, como parte da camaradagem, pescava. Este foi o acontecimento provocativo que, juntado a sua vocação pesqueira, o levou a efetivar a compra desta relíquia, a canoa Santa Luzia, e por conseguinte a formar, junto a doze camaradas, sua maruja, dos quais oito eram adolescentes.
Entre os adolescentes daquela época, estava um sobrinho, Nivaldo Rodolfo da Cunha, e o filho mais velho, Alicino Alarício do Espírito Santo, que por muitos anos seguintes se destacaram como pescadores de vultosos conhecimentos contextuais da pesca da tainha em Naufragados. Estes dois célebres pescadores, Nivaldo e Alicino, são hoje memórias vivas e presentes da pesca artesanal da comunidade de Naufragados.
