O rancho de pesca Manoel Rafael é muito mais do que um lugar onde dorme a canoa Glória e a canoa Glorinha. Ele é um espaço de encontro dos pescadores, da cultura, tradição e da alegria. Construído há mais de 70 anos, homenageia o Seu Deca, pai de Getúlio Manoel Inácio, e é atualmente um dos principais pontos de resistência cultural da Ilha de Santa Catarina.
Seu Getúlio era músico militar da aeronáutica, e após se aposentar, foi no rancho que ministrou aulas de música, formando diversos músicos na comunidade. Com o maior orgulho, Seu Getúlio dizia que dali saiu professores de música, acadêmicos da UDESC e muita gente que foi encaminhada para ganhar uma graninha em orquestras e bandas. Foi sua a ideia também de abrir o espaço para formação de remadores de canoa, algo que ele aprendeu naturalmente com o pai, mas que se perdeu na comunidade com o passar dos anos. O rancho também foi palco de diversos eventos na comunidade e chegou a abrigar um cineclube.
É nesse rancho que todo ano no dia 1º de maio acontece a Abertura da Safra da Tainha, que já virou tradicional e entrou para o calendário de eventos do município. O local enche de gente. O espaço guarda uma história linda e lendária do Campeche, da amizade do pai do Seu Getúlio e do aviador francês Antoine Saint-Exupéri, autor do famoso livro O Pequeno Príncipe, uma das obras mais vendidas e lidas até hoje (o livro é da década de 1940). Com uma edição bilíngüe português-francês, Seu Getúlio escreveu o livro “Deca e Zé Perri”, contando esta história da amizade de seu pai, o pescador com o piloto, entre 1929 e 1930.
Seu Deca homenageava sua família colocando o nome das filhas em sua canoas. Além da centenária Glória, outra canoa que seu Deca comprou do Doca Antunes, deu o nome de Célia, tinha também a canoa Renilda. Os arrastões da praia do Campeche feitos com cordas de cipó, rede de barbante de um pano só de tucum (anterior a rede de nylon) chegou a puxar um dos maiores lanços, em torno de 22 mil tainhas. Doca Antunes e Hermínio Faustino, exerciam a atividade de pombeiros (hoje denominada atravessador) e iam de carroça até o Mercado Público vender o pescado. Era uma atividade muito trabalhosa e o peixe não tinha preço.
Glória, canoa centenária, feita de madeira garapuvu de um pau só, a árvore símbolo da Ilha, foi comprada pelo Seu Deca lá na praia dos Ingleses que fica no norte da Ilha. Em torno de 10 pescadores foram buscá-la. Veio pelo mar com um pano de vela com os tripulantes Arcelino, pelo próprio Deca Rafael, Onofre, Dionísio, Zé Lourenço, entre outros, mostrando a destreza destes pescadores na navegação.
Em 2016, uma notificação da Floram (órgão do Meio Ambiente da Prefeitura) ameaçou a existência do rancho, com um mandato de demolição. A decisão, felizmente, foi cancelada. Foi no dia 31/01/2018, após um ano de luta contra um câncer, porém sem deixar de participar das atividades do rancho, que Seu Getúlio encantou, com o cumprimento de seu papel de guardião da história da comunidade do Campeche, da cultura e da tradição.
Em 2020, para a alegria de todos, em homenagem in memorian a Seu Getúlio, através da Cartografia Social do Território Tradicional da Pesca Artesanal da Tainha no Distrito do Campeche, obteve-se o registro da pesca artesanal da tainha no Campeche como Patrimônio Cultural de Santa Catarina.
A família do Seu Getúlio viabilizou a criação do Instituto Getúlio Manoel Inácio. Uma forma de homenagear esse querido agitador cultural, mas também de dar continuidade ao trabalho que ele sempre desenvolveu no Campeche, com a pesca, a música e a história da comunidade. Agora em 2024 o projeto cultural da pesca artesanal: compartilhando saberes com o objetivo de passar a história e os saberes para todas as gerações, com o intuito de valorizar e dar continuidade a essa atividade, ganhou o prêmio Floripa Faz Bem da NSC na categoria educação.
E como dizia o saudoso Seu Getúlio: Vamu Rapazi!
