O povo Guarani Mbya ocupa historicamente o litoral de Santa Catarina. Datações apontam a presença deste povo nestas terras desde o ano 1000 d.C, com sítios arqueológicos que se estendem pela Ilha de Santa Catarina e diversos municípios litorâneos do continente catarinense. Foram denominados como “carijós” pelos europeus na ocasião dos primeiros contatos da colonização, designação que é muito usada até hoje quando se busca endereçar a herança cultural indígena ao desenvolvimento histórico local.
Atualmente, os Guarani Mbya estão presentes em diversas terras indígenas pelo litoral catarinense, sendo as mais próximas da capital a M’biguaçu, Mymba Roka, Cambirela e Morro dos Cavalos (cujos membros assinam a calda da Tainha ao Vento). O alcance desta etnia ainda se estende pelos Estados do sul e sudeste do Brasil, assim como no leste do Paraguai, no nordeste da Argentina e do Uruguai. Há outros grupos étnicos Guarani para além dos Mbya no Brasil, mas são principalmente os Mbya que vêm ocupando com continuidade as áreas do litoral Atlântico.
A assimilação de diversos saberes dos povos Guarani foi fundamental para a capacidade de adaptação dos juruá, como eram chamados os colonizadores europeus, no “Novo Mundo”. Estes nativos eram grandes agricultores, com habilidades para o cultivo de espécies nativas como o milho, mandioca, feijão, amendoim, batata-doce, abóbora, entre outros alimentos que até hoje fazem parte da alimentação tradicional catarinense. Também caçavam, pescavam e coletavam moluscos, detendo grande conhecimento sobre a fauna local. É de amplo reconhecimento, tanto entre especialistas da área como entre os antigos manezinhos do litoral, que os “carijós” eram exímios canoeiros e transmitiram aos recém chegados açorianos o conhecimento da fabricação da tradicional canoa de um pau só.
Os Guarani Mbya, historicamente, instalaram suas aldeias, as tekoá, em locais “eleitos” que têm relação sagrada com a prosperidade física e cultural deste povo, segundo sua cosmologia. Modo geral, são ambientes de uma rica biodiversidade e de abundância de corpos d’água, sejam eles rios, fontes, lagos ou o grande mar. Para os Guaranis, o território escolhido deveria prover a possibilidade de pesca e o consumo dos pescados, que são considerados fundamentais na constituição da saúde do corpo e da alma.
Os peixes, pirá, fazem parte da base alimentar Guarani e, na classificação de alimentos tradicional, são considerados um tipo de alimento leve e nutritivo, que, assim como vegetais, como o milho ou o aipim, nutrem o aspecto sagrado do corpo e da alma, sendo adequado ao desenvolvimento espiritual daqueles que seguem o nhande reko, o modo de vida guarani.
Os métodos de confecção de redes e as técnicas de pesca, tal qual o arrasto de praia, utilizadas pelas comunidades tradicionais de pesca artesanal da Ilha de Santa Catarina e litoral catarinense, são heranças atribuídas historicamente aos nativos “carijós”. Por ser um lado invisibilizado da História, pouco se sabe sobre como teria se dado a transmissão destes saberes. Além disso, não há consenso se o uso de redes de pesca de fato fizera parte da tradição antiga Guarani Mbya, ainda que haja entre representantes do próprio povo e entre pesquisadores etnográficos aqueles que acenam positivamente a esta perspectiva. No livro “Guaraníes – Gente Americana”, os antropólogos María de Hoyos e Miguel Angel Palermo afirmam o uso secular de redes de pesca entre este povo.
De qualquer maneira, os indícios das raízes indígenas da cultura da pesca da tainha não deixam dúvida que a prática foi assimilada, e não trazida, pelos açorianos e outros europeus que se instalaram pelo litoral. Em 1577, o alemão Hans Staden deixou registrado em seu famoso relato “Duas viagens ao Brasil” o método de pesca da tainha utilizado pelo povo Tupinambá:
“Usam também de pequenas redes, feitas de fibras, que tiram de umas folhas agudas e compridas tochaun (tucum); e quando querem pescar com redes, reúnem-se alguns e cada qual ocupa o seu lugar na água. Quando esta não é funda, entram uns poucos, formando círculo, e batem na água para o peixe afundar e cair então na rede. Quem mais apanha divide com os outros. Muitas vezes vêm à pescaria aqueles que moram longe do mar. Apanham muito peixe, secam-no ao fogo e o moem num pilão, fazendo uma farinha, que se conserva por muito tempo.”
Hoje em dia, após séculos de colonização e de desenvolvimento urbano predatório, que degradaram ecossistemas nativos e impactaram profundamente a organização sociopolítica dos territórios indígenas, os Guarani Mbya seguem cultivando seu modo de vida tradicional dentro de suas possibilidades. Os territórios — demarcados ou não — que hoje ocupam são insuficientes, porque não cumprem o mesmo papel de um ecossistema íntegro. Desta maneira, práticas fundamentais do nhande reko, como a agricultura, a caça e a própria pesca, vão enfraquecendo ou se tornando inviáveis.
O modo de vida indígena está intrinsecamente ligado às origens do modo de vida tradicional das comunidades de pesca artesanal de Ilha e de todo o litoral catarinense. Hoje, estes modos de vida compartilham as causas da desmobilização e enfraquecimento do conjunto de práticas culturais e econômicas que os constituem: a urbanização desenfreada, a especulação imobiliária e a degradação dos ecossistemas.
Por outro lado, a demarcação dos territórios e o reconhecimento dos direitos territoriais dos Povos Indígenas, assim como das Comunidades Tradicionais de Pesca Artesanal, fazendo valer os acordos internacionais como a Convenção nº 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que são fundamentais para salvaguardar os modos de vida tradicionais, ligados à terra e ao mar, que historicamente são os grandes protagonistas na conservação das florestas, das águas e da biodiversidade como um todo.
