A ponte Hercílio Luz é o principal cartão postal da cidade de Florianópolis e do Estado de Santa Catarina. Até o momento da construção da mesma, iniciada no ano de 1922, o único acesso à capital do Estado se dava através de balsas. Este período do início do século XX ficou marcado como uma época de grandes construções civis, quando o regime republicano federativo trouxe investimento público a diversas capitais do país, como aqueles que são responsáveis por parte das grandes obras urbanas que fazem Florianópolis ser como conhecemos hoje. A construção da ponte Hercílio Luz, entretanto, partiu de um empréstimo de bancos norte-americanos que hoje somariam quase dois trilhões de reais, valor que mensura a magnitude da obra.
A construção está envolvida em diversos pontos de discussão e polêmicas, mas o ponto que liga a importância da ponte ao monumento Tainhas ao Vento é o fato de que, sendo o primeiro acesso “terrestre” à ilha, a Hercílio Luz é um marco histórico na guinada urbanística que trouxe a cidade à realidade dos dias de hoje. Com quarenta mil habitantes na época, Florianópolis passou por uma grande transformação sociocultural. O transporte, por exemplo, era majoritariamente por veículos movidos por tração animal, a pé, ônibus ou barco. O desenvolvimento urbano criou uma transformação social na região central, levando famílias menos abastadas para os morros e outras localidades da ilha de menor especulação imobiliária. Por outro lado, fez com que aumentasse o fluxo de pessoas, de ideias, jornais e revistas, insurgindo assim uma expressão cultural metropolitana.
Sobretudo, o processo urbanizador trazido através da ponte Hercílio Luz impactou e alterou profundamente o modo de vida das comunidades tradicionais de pesca artesanal da ilha, que ao longo das décadas foram perdendo espaço e tendo seus direitos à gestão de seus territórios tradicionais atravessados e negligenciados. Apesar disso, o modo de vida tradicional, ligado ao mar e à terra, em diversos aspectos é mantido vivo até hoje, em todo território da ilha e inclusive na região da ponte Hercílio Luz.
André Fernandes, pescador de 49 anos de idade, é um exemplo da força que tem a relação do cidadão nascido na ilha com o mar. Ele e seu irmão mantêm a tradição, que já vem de duas gerações anteriores a eles, em um rancho de pesca no pé da Ponte Hercílio Luz, no lado sul da ponta insular. Sobre suas raízes, André relata: “Sou cria daqui, raiz daqui. Eu fui criado na Baía Norte, nossa casa ficava ao lado do Hotel Slaviero. Ali eu morei até os 43 anos. A maioria da nossa família, meus irmãos, meus sobrinhos, todos pescam… O avô também era pescador. Toda a linhagem”.
Há mais de quatro décadas a família de André mantém o rancho naquela área, que antes era localizado na base norte da ponte, porém com a reforma da mesma o Departamento Estadual de Infraestrutura (Deinfra) permitiu que eles ficassem somente no lado sul, perto de outras moradias e do restaurante Píer 54, onde se encontram até hoje.
De terça a sexta André acorda às quatro da manhã, para através da pesca levantar o sustento para sua família, assim como aprendeu com o pai, desde os seis anos de idade. Nos últimos três anos, tem como rotina semanal, quatro dias no rancho pescando junto com o sobrinho e o irmão que é proprietário do rancho, e nos finais de semana fica com a esposa, com quem hoje reside em Palhoça. André costuma pescar robalos, garoupas e pescadas-amarelas. Ele também faz mergulhos para capturar mariscos grandes, com cerca de 10 centímetros.
“Para a gente, trabalhar aqui embaixo é normal. Mas às vezes, eu tô arrumando a rede na rua, e o pessoal fica mexendo com a gente ali de cima. Parece que a gente é uma atração, um zoológico. Era melhor quando só passava pedestres na ponte”, relata André, afirmando que muita coisa mudou desde que a ponte foi reinaugurada e aberta para visitação turística, em 2019.
Ao longo desses quatro dias semanais, ele também usa o rancho como habitação. Transformando a canoa em cama, ali quase não usa o celular e se alimenta basicamente do pescado, reforçado as vezes por um feijão que costuma trazer de casa. O pescador ainda relata: “Tem gente que diz que aqui é poluído. Poluído entre aspas para mim, que sou cria daqui. Os mariscos que pego são todos limpos. Porque olha a força da maré e do vento. O lixo não para aqui”.
Há três anos André vem se dedicando integralmente à pesca, com a qual afirma que hoje não sustenta apenas sua família, mas também uma tradição de muito valor. Com alegria, finaliza: ”Tenho uma filha de 24 anos que tem um moleque de 8 meses. Ela é do Oeste [de Santa Catarina]. Esses dias, ela mandou um vídeo para mim… Olha! Ele já tá comendo peixinho.”
Os relatos e a história de André utilizados no texto foram retirados da reportagem do portal NSCTV de 29/06/2024 disponível em https://www.nsctotal.com.br/noticias/pesca-e-cultura-a-vida-nas-aguas-da-baia-norte-contada-por-um-pescador-de-florianopolis
