O Processo Criativo
Sou Marcio Sodré, autor de joias e escultor. Quando surgiu a proposta de uma escultura para o Floripa Airport, eu estava trabalhando em uma coleção de joias com a temática da Ilha.
Entre as peças criadas, havia a uma que junta os temas renda de bilro e tainha – a ideia era criar uma tainha a partir da técnica da “perna cheia” utilizada na renda de bilro.
A perna cheia é feita com 4 linhas, 3 que sustentam e 1 que faz o trançado, então pensei em utilizar 3 fios de prata para sustentação e 1 fio de ouro para fazer o trançado, surgindo uma peça em forma de tainha, com a técnica da renda de bilro.
Percebi que esta joia poderia ser utilizada em qualquer escala, podendo ser uma escultura grande, e neste caso os fios verticais seriam tubos de aço inox, e o trançado de rede de pesca usada.

Quando o Floripa Airport abriu o concurso de obra de arte, e minha ideia inicial era inscrever esta escultura vertical, porém surgiu a vontade de experimentar colocá-la em cardume.
Mas ao tentar organizar as tainhas em cardume intercalando os peixes, surgiu espontaneamente a forma de um losango. Surgiu também e a ideia de sustentá-las por cabos de aço para que girassem com o vento, e a partir do cardume, a ideia da estrutura necessária para sustentação.


O último desafio foi chegar ao formato da tainha, após dissecar algumas tainhas congeladas.
A estrutura da tainha deveria ser vazada, para passar o vento e dar ao rabo a função de direcionamento. Para isto escolhi uma estrutura de inox revestida de rede de pesca usada.

Escolhi o tema “Tainha” por ser um tema de grande importância cultural, invoca nossa ancestralidade e nossos costumes. Uma boa forma de homenagear nosso povo.
A ideia inicial era fazer junto com a obra física, 1 site para homenagear 85 pescadores, porém conforme fomos pesquisando, decidimos homenagear 85 grupos de pescadores, cada um com sua página no site.
Para inscrever o projeto no edital do Aeroporto, primeiramente procurei Roseane Panini, que topou entrar como produtora.
Logo em seguida procurei os Arquitetos Harnonn Cardoso e Ana Paula Balque, que de pronto aceitaram entrar na equipe, contribuindo com os desenhos 3d e detalhes de arquitetura e paisagismo.

O que tenho a dizer…
Para compreender esta homenagem ao pescador artesanal de nossa Ilha, é preciso compreender a origem do povo “manezinho caiçara”, que surgiu do encontro dos indígenas com o homem branco, e como esta cultura chegou até os dias de hoje.
Quando os Europeus, nas grandes navegações, chegaram à esta ilha, já era habitadas pelo povo Carijó (Guarani) – uma civilização bem organizada, que vivia do plantio da mandioca entre outras plantas, da caça e da pesca.
Segundo Hans Staden (um Alemão que viveu entre os indígenas entre 1550 e 1557), pescavam pelo mês de agosto uma grande quantidade de peixe (época da tainha), que secavam no fogo, moíam e misturavam com farinha de mandioca – assim podiam armazenar para o ano todo, e inclusive fornecer para o homem branco.
Quando Dias Velho, em 1675 veio “colonizar” a Ilha, esta já se encontrava repleta de Carijós – Dias Velho trouxe consigo 8 “homens brancos” e 500 indígenas escravizados. Vê-se aí que a ocupação da Ilha foi feita majoritariamente por indígenas, e quando Dias Velho, junto com sua família, foi morto por corsários ingleses, esta população indígena por aqui ficou.
Mais tarde, a partir de 1748, vieram 12 mil Açorianos, de um arquipélago no meio do oceano atlântico escasso de recursos e assolado por vulcões, terremotos e furacões.
Um povo especialista em sobrevivência, acostumado a viver em um arquipélago de poucos recursos, que enfrentou uma viagem de miséria, fome e morte por 3 meses pelo Atlântico.
Ao chegarem por aqui tiveram que adaptar seu modo de vida, pois nos Açores viviam principalmente do cultivo do trigo e do gado, mas encontraram um solo inóspito para o trigo, sendo socorridos pelos indígenas que os mostraram o cultivo da mandioca e a pesca, e a partir daí com a grande engenhosidade dos artesãos açorianos, desenvolveram os engenhos de farinha, que junto com a pesca, a lavoura e o gado, tornaram-se o modo de subsistência do Ilhéu.
Os açorianos trouxeram também uma rica cultura com um grande apelo à coletividade. Uma religião própria – O culto ao Divino Espírito Santo, que foi desenvolvida durante os séculos de isolamento no meio do atlântico, uma estratégia de sobrevivência social que manteve a comunidade unida diante das adversidades, minimizando a hierarquia e dando ênfase às festas e aos encontros coletivos. A bandeira e a festa do Divino, junto com os “ternos de reis” são momentos de encontro da comunidade, que mantém vivo o espírito de coletividade.
A formação do caiçara “Manezinho da Ilha”, com seu jeito acolhedor e inocente, veio desta mescla do povo Açoriano com os Carijós.
Muito se tem escrito de nosso legado Açoriano, mas temos que lembrar também que nossa cultura em grande parte é herança dos Carijós, visto que desde o descobrimento, relatava-se que aqui vivia o “melhor gentio da costa brasileira”, ou seja, o povo mais gente boa e acolhedor entre os indígenas do Brasil, um povo já bem “manezinho”.
O legado Carijó é bem pouco percebido, vislumbramos apenas em pequenos detalhes – em expressões típicas da ilha como dizer “nosso pai”, “nossa mãe”, “nosso irmão”. Pelo jeitinho introvertido, de pouco falar.
No Pântano do Sul, os pescadores de tainha tem o hábito de “apupar” – quando a tainha chega, dá-se uma aviso gritando “uuuuuuu”, e toda a comunidade repete e sai para ajudar na pesca. Este grito de “uuuuuu” é um hábito indígena de cumprimento, que pode-se ainda hoje observar em várias tribos Guarani, e entre os caiçaras de Paranaguá.
O legado Indígena está ainda bastante forte nas Parelhas de pesca da tainha, as quais visitamos e homenageamos neste monumento de memória. Uma parelha é um grupo de pescadores que se engajam durante 2 a 3 meses por ano na pesca da tainha entre os meses de maio até julho ou agosto. Em cada parelha há um envolvimento tribal – trabalham juntos, comem juntos, confraternizam e se divertem muito. É uma grande festa, uma grande gincana na qual dividem o fruto do trabalho e estreitam seus laços sociais.
O hábito de viver em coletividade faz muita falta nos dias atuais, no mundo moderno nos acostumamos a ficar isolados cada um em sua casa, chegando a ponto de não conhecermos nossos vizinhos, perdemos este senso de grupo e da importância de uma vida comunitária, mas que felizmente por aqui ainda é praticado pelo povo nativo na pesca da tainha, nas festas populares, na bandeira do divino, no boi de mamão.
O povo Caiçara é o produto do encontro do indígena com o homem branco, sendo um povo tradicional que necessita de um território para existir. Está espalhado por todo o litoral do sul e sudeste do Brasil, em alguns lugares ainda os encontramos em território intocado, como na baía de Paranaguá, em outros, como na Ilha de Santa Catarina, seu território foi sendo espremido pela modernidade.
Nos anos 70, esta ilha era ainda majoritariamente um território caiçara. Podia-se percorrer vários bairros sem existir praticamente nenhuma cerca, as pessoas transitavam livremente entre as propriedades. O território de pesca, de roça, era compartilhado.
Meu pai, a exemplo da grande maioria dos nativos da época, quando jovem vivia uma típica vida caiçara, vivendo da roça de mandioca e outras culturas, engenho de farinha, gado, pesca. Como praticamente todos os nativos de sua época, quando chegou a “modernidade”, arranjou um emprego de carteira assinada, mas nas horas vagas continuava cuidando do gado, da roça, da pesca.
E como a grande maioria do pessoal nativo, com a modernidade os terrenos foram sendo vendidos, o território diminuindo, foram se adaptando.
Franklin Cascaes, quando percebeu que a modernidade ia modificar severamente o modo de vida manezinho caiçara, dedicou sua vida a registar esta linda cultura via esculturas, desenho, relatos da tradição oral, etc.
E quem é o “Manezinho” de hoje?
É o produto de um novo momento de mistura cultural. Se o manezinho caiçara foi originado do encontro do indígena com o homem branco, o novo manezinho é o resultado da mistura do caiçara nativo com o povo que vai chegando e chegando, de todas as influências de nosso mundo contemporâneo.
Acho muito bonito, e isto acontece muito, quando ouço da boca de um cidadão que veio de fora dizer: “Ah, já moro aqui há alguns anos, já sou manezinho…”
Dá pra perceber que as pessoas que nasceram em outros lugares e moram na ilha tem um carinho muito grande por esta terra, pessoas que desejam ser manezinhos, e assim o acabam sendo. Mas para bem ser, é preciso bem conhecer.
Esta Ilha é tão querida por todos, mas não é pelo número de prédios e áreas urbanizadas, e sim por suas belezas naturais e o lindo povo e cultura que aqui ainda vive. A Magia da “Ilha da Magia” é justamente sua beleza natural e o seu povo, que são indissociáveis.
Hoje nesta cidade, temos o grande desafio de conciliar o crescimento urbano com a manutenção da cultura tradicional. E temos ainda o grande júbilo de ter entre nós aquele ainda puro sangue “manezinho caiçara” raiz, que é o nosso pescador tradicional, que como qualquer povo tradicional, necessita de um território para desenvolver sua atividade.
De acordo com um tratado internacional no qual o Brasil é signatário, a Organização Internacional do Trabalho – “Todo povo tradicional tem por direito o território no qual retira seu sustento”. Este território precisa ser livre de poluição e precisa estar acessível ao pescador.
Desta forma, temos a grande vantagem de, ao ter por aqui este povo tradicional, ter por lei a garantia de que nossas águas devem ser preservadas, livres de poluição, e acessíveis a todos.
Preservar nosso pescador artesanal é preservar nossa cultura, nosso mar, nossas praias e nossas belezas naturais.
É um povo humilde no que diz respeito ao poder aquisitivo, mas gigante na cultura, no exemplo de um modo de vida sustentável e de soberania alimentar, o qual temos a obrigação de preservar.
No Monumento de memória “Tainhas ao Vento”, visitamos durante a safra da tainha 85 grupos de pescadores, os quais recolhemos seus autógrafos na cauda de cada tainha, e dedicamos a cada um deles uma página na internet para contarem sua história, suas fotos, seus nomes, seus rostos. Porém é certo que visitamos apenas uma pequena porcentagem dos pescadores desta ilha. As 85 parelhas reconhecidas nesta escultura são apenas a ponta do Iceberg, estendemos nossa homenagem à esta maioria que não foi visitada, a todos que tem uma tarrafa em casa, uma rede, um jereré, uma bernunça, os tiradores de berbigão, todos os que herdaram e que praticam esta cultura.
Não existe cultura manezinha sem a cultura da pesca. Afinal, como canta nosso Menestrel Valdir Agostinho, “A extinção da pesca, é a mesma do mané.”
Agradecimentos
Agradeço primeiramente à meu pai e minha mãe, cuja infância tive o gostinho de uma vida caiçara. Meu pai, mesmo depois de ter um emprego de carteira assinada no comércio, continuou praticando a cultura caiçara, plantando mandioca, fazendo farinha no engenho, cuidando do gado, da lavoura. Assim que tive na infância um gostinho deste tipo de vida sustentável, pude viver aquela ilha impregnada da cultura tradicional, aprendi a fazer e a jogar tarrafa, pescar camarão de “clilibrim”, plantar mandioca, fazer farinha. Com minha mãe aprendi a cuidar de gado, fazer queijo, pirão, nossa comida típica.
Especificamente na construção da escultura, foi meu pai que costurou as caudas e o pano de rede de pesca nas 85 tainhas.
Agradeço também à Roseane Panini, que foi minha parceira e companheira no projeto e na execução da escultura, na construção do site e na visita, fotos, histórias das 85 parelhas de pesca, que juntos eu e ela, tivemos o prazer de visitar.
Aos arquitetos Harnonn e Ana, que abraçaram a causa e deram uma rica contribuição no projeto 3D, na escolha do paisagismo e outros detalhes da obra, Harnonn sendo um grande entusiasta da causa “manezinha” em todos os sentidos, e com várias frentes de atuação.
À Mariah e Alison, que com sua escrita apurada trabalhou na pesquisa redação dos textos do site, grandes entusiastas das causas populares.
Ao Marcelo Metal e sua equipe, que se empenharam com esmero na construção da estrutura de suporte das tainhas.
Ao Diogo, o construtor do site do tainhas ao vento.
À todos os nossos pescadores artesanais por manter viva esta linda cultura.
Ao Floripa Airport, pela linda parceria.